Introdução novo romance

Sob o manto estrelado da noite, Lucca mantinha-se fiel à sua inseparável obturadora. A Leica M7 era um relicário de memórias e momentos. Muitas e muitas lembranças eternizadas pelo olhar perscrutador do artista. A câmera, cabe contar, fora um presente de uma alma querida. Por isso, ela era mais do que um instrumento; era a extensão do próprio ser de Lucca. Sem modéstia, uma parte de si que capturava a essência do mundo. Aquele monstro, o qual girava em um silêncio barulhento. Aos poucos a noite cedia ao alvorecer, como Lucca à sua paixão pelo belo. Seus dedos, percorriam as linhas e os botões da máquina com destreza. Quase como um violinista era íntimo de cada nota de uma partitura que repetira exaustivamente. O toque quente sob o metal frio, fazia dela um amuleto. Uma peça que protegia os segredos da arte de Lucca. Ao respirar fundo, o aroma da manhã florentina entrelaçava-se ao sopro de vida. Fresco e promissor, animando suas veias e pulsando com o desejo de revelar o invisível.

Cada dia a nascer era um cartucho fotográfico imaculado. Inquieto pela coreografia entre a claridade e a escuridão, seu coração palpitava ao ritmo dos cliques. Aqueles que perpetuariam retratos originais com maestria. Quadros que apenas um olhar apurado como o dele poderia destrinchar. O vício em explorar preenchia suas entranhas. Era uma espécie de caos organizado. Talento que se manifestava nas linhas sinusoidais e nas paletas de cores de suas obras. Sempre imprevisíveis. Lucca era um artista da luz, um caçador de fragmentos fugidios. O artista era um ser que vivia para dar forma ao efêmero. Um pouco como os românticos de outrora, que viam na arte a expressão mais pura da alma.

Em meio à tessitura da história e da beleza, Lucca buscava o sopro de inspiração que animava sua arte. Florença era o berço do Renascimento. Com suas pedras impregnadas de genialidade como nenhuma outra. Repleta de vielas murmurando narrativas ancestrais. Era o cenário onde o fotógrafo se confundia e se descobria. A cúpula de Brunelleschi, majestosa e serena, parecia vigiar a cidade e também o artista que ali habitava. Lucca, homem de semblante pensativo.  Nos traços de seu rosto trazia a marca indelével dos dias vividos entre imagens e sonhos. Seus olhos, de um azul profundo como as águas do Arno após as chuvas.  Neles, não se refletiam apenas a luz das arcadas medievais. Eram muito mais que isso. Eram também os mistérios que somente um olhar sensível poderia desvendar.

Como janelas para a alma. Passagens pelas quais o amor pelo ofício se revelava avassalador como nossas primeiras paixões. “É preciso acertar o passo com a razão", pensava Lucca, enquanto a brisa fresca da manhã lhe acariciava o rosto. Na sacada de seu modesto apartamento, ele se deixava embalar pelo espetáculo cotidiano.  Os dias se desenrolavam como um quadro de Botticelli. Telhados de terracota, como um mar de ardósia aquecido pelo sol. Um mosaico de cores que falava da vida pulsante da cidade. As torres sineiras se erguiam altivas. Apontavam para o céu como se empreendessem uma conversa eterna com os deuses.

Abaixo, as ruas calcetadas eram veias por onde o sangue da cidade corria. Eram onde se entrelaçavam turistas e florentinos. Um bailado de movimento e vida. Ao longe, as colinas toscanas abraçavam a cidade com um carinho protetor. Como ondas verdes congeladas. Naquela cidade, cada esquina era um altar da arte. Cada dia era uma dádiva, cada momento uma oportunidade para o eterno. Lucca, com sua Leica M7, era um sacerdote desse culto à beleza.  Cada clique lhe possibilitava celebrar aquela liturgia. A magia de um mundo que não se cansava de se revelar a seus olhos. A existência de Lucca desenrolava-se em Florença como um poema.  Em que cada verso era tecido pelo som metálico de seu instrumento. Claro, além do murmúrio incessante das calçadas que contavam histórias.

O Mercado de San Lorenzo era o batismo diário de sua arte. Um cenário de cores vivas e vozes entusiastas. Entre os aromas de especiarias e o sussurro das conversas matinais, Lucca capturava o despertar da urbe.  Na luz que se esgueirava pelas frestas da manhã revelava as histórias ocultas em cada gesto. Em cada olhar. Ainda tímido, o alvorecer começava a acariciar os vértices dourados dos palacetes. Lucca já se fazia presente, uma sombra entre as sombras. Com a Leica M7 a lhe servir de amuleto. Pelas vielas de pedras irregulares, seus passos tinham o ritmo de um soneto. Como se ecoassem uma melodia conhecida apenas por ele e pela cidade que o acolhia. 

Os raios solares, já mais audaciosos, acompanhavam-no até a Piazza della Signoria. Era onde a grandiosidade do Palazzo Vecchio se erguia como um guardião de séculos. Ali, sob o olhar impassível das estátuas, Lucca registrava a dança dos dias: o espanto reverente dos turistas, o passo célere dos cidadãos. Todos conhecedores de cada pedra da praça como as palavras de um antigo cântico. Seu trabalho, ainda desconhecido para o grande mundo, era um tesouro escondido entre os mestres locais. As galerias da Via dei Fossi, refúgios de arte e sussurros cultos, abrigavam suas obras. Cada crítica era um acorde em sua sinfonia de reconhecimento. 

A sensibilidade de suas imagens eram tão genuínas quanto o toque de um velho amigo. Aclamada por capturar não só o palpável, mas também o sopro invisível que animava a cidade. Lucca era um artista de meia-idade com a alma lavrada pelas experiências. Carregava em seus olhos o peso das memórias e em seu peito o fogo das paixões. Sua Leica, companheira de tantas jornadas, pendia ao seu lado. Um símbolo do fardo e da glória de ser um narrador das coisas belas e efêmeras.  Um filho bastardo de uma cidade que guarda seus mistérios como um amante ciumento. Florença, com seus segredos e esplendores, era o palco onde Lucca vivia sua própria ópera. Eterna melodia que ecoava através das lentes de sua câmera. Nota por nota, nas páginas da história que ele, a cada dia, ajudava a escrever.

A rotina de Lucca desenrolava-se com previsibilidade. Aquela de um relógio antigo, cujos ponteiros dançavam ao ritmo das horas bem contadas. Após o recinto majestoso da Piazza della Signoria, o destino certo era a Piazza della Repubblica. Era onde o calor do espresso e o doce arrependimento do cornetto selavam um pacto de conforto com sua alma. Lucca entregava-se à análise minuciosa de suas capturas fotográficas. Naquele café, frequentado por viajantes alheios e atendidos por serventes de semblantes impassíveis. Como se cada imagem fosse um enigma a desvendar, um mistério sem corpo e sem crime.

As tardes, essas ele dilapidava no Giardino di Boboli, tal qual uma dama furtiva que se deleita com a própria esquiva. Um emaranhado de verde onde a inspiração parecia esgueirar-se por entre as folhagens. Lucca errava por entre os canteiros e as estátuas silenciosas, a câmera pendendo-lhe ao lado como um peso morto. A sensação de um mundo que se distanciava, indiferente ao seu ofício. Foi em uma dessas noites sem fim que o destino resolveu entrelaçar seus fios caprichosos na trama da vida de Lucca. Quando o rio Arno se estendia sob o manto estrelado como uma faixa de cetim enegrecido. O aparelho eletrônico, até então mudo e insensível, vibrou com uma mensagem que parecia desafiar a lógica da realidade: “Skibidi Toilet”. Palavras que flutuavam como sussurros de um mundo paralelo, obscuro e fascinante.

Movido por uma curiosidade que brotava do mais íntimo de seu ser adormecido, ele cedeu ao chamado daquela ligação misteriosa. O que se revelou aos seus olhos teria feito o próprio Dante hesitar entre o temor e o encantamento. Figuras que pareciam ter emergido dos delírios mais fervorosos de um Bosch alcoolizado. Elas retorciam-se em harmonia caótica, uma sinfonia que desafiava os limites da razão. Um riso áspero escapou dos lábios de Lucca. Como o farfalhar de folhas secas ao sabor do vento. Era o som de um homem que, ao contemplar o abismo, descobria que este lhe retribuía. De forma escandalosa: com um piscar de olhos travesso. Havia algo mais naquele riso. Uma nota quase angelical. Como se um fragmento adormecido de Lucca despertasse após um hibernar prolongado.

As horas desapareciam, dissolvendo-se como açúcar em chá quente. Enquanto isso, Lucca se afundava cada vez mais naquele labirinto digital. “Datamoshing”, “Glitch Art”, “Deepfrying” cada termo era um portal para um cosmos inexplorado. Um convite irrecusável para redescobrir a arte que ele julgava tão familiar. Dio mio, murmurou ele, a voz grave como o eco de um sino distante. Os olhos,porém, cintilando com um brilho há muito esquecido. Era o olhar de um homem renascido. Maravilhado como uma criança diante de um mundo novo e fascinante. Uma terra onde cada pixel era uma estrela em um firmamento desconhecido. Pronto para ser desvendado.

O véu suave da alvorada tingia o firmamento de matizes rosados e dourados com pinceladas delicadas. Sob ele, Lucca conservava-se estático na Piazza della Signoria. Um pedestal humano no qual a transformação se operava. Por fora, a estática de um homem; por dentro, o turbilhão de um mundo que se recriava. Aquele artífice das sombras. A essência do Lucca cético havia se desvanecido ao sopro da noite. No lugar, surgia um ser transfigurado pela sarabanda onírica de sanitários dançantes. Tocado pela explosão de imagens que desafiava a percepção comum.

Restava-lhe o renascimento. A ressurreição das cinzas digitais, um renascer pixelado, vibrante. Lucca  tinha o olhar de um veterano, mas a sede de um aprendiz. Começou a discernir padrões, aos poucos. Foi desvendando técnicas naquela frenética dança das imagens. “Fascinante”, conjecturava, a mente fervendo em um caldeirão de potenciais. Ele empunhou a câmera como se fosse uma espada recém-forjada. No instante seguinte, lançou-se pelas artérias de Florença. A cidade antiga, impávida e altiva como sempre, fitava-o. A lente reajustada pelo absurdo. Agora, Lucca via as fendas, as brechas na tessitura da realidade.

As horas deslizaram como um véu, imperceptíveis. Enquanto isso, Lucca se embrenhava nesse novo cosmos digital. Quando finalmente emergiu da jornada virtual, a aurora já se anunciava novamente. Seus olhos já mostravam cansaço. A mente, porém, fervilhava com as impressões recém-colhidas. Ao recolher-se, Lucca notou uma alteração sutil, contudo profunda: suas cogitações agora entrelaçavam-se. Cheia de imagens surreais e conceitos peculiares descortinados. Era como se um véu houvesse sido erguido, desvelando um novo horizonte criativo, inexplorado.

Os dias subsequentes viram Lucca ser irresistivelmente atraído por esse universo digital renovado. Entre sessões fotográficas, seu smartphone tornou-se um portal para esse mundo paralelo. Durante refeições solitárias, um sorriso misterioso esboçava-se em seus lábios. Um reflexo de trocadilhos ocultos, indecifráveis para os circundantes. As noites, antes dedicadas à minuciosa labuta de edição de imagens, converteram-se em maratonas de conteúdo absurdo. As notificações de novos vídeos tornaram-se chamados imperiosos. Em contraste, seus projetos fotográficos de longa data pareciam descorados e obsoletos.

Lucca, via-se agora envolvido em uma transformação íntima. Quem diria que antes fosse devoto da serenidade artística? Aquela que Florença emoldurava com esmero. Uma parte dele ainda suspirava pela captura da beleza intemporal da cidade através do visor de sua câmera. Outra parte, cada vez mais audível, clamava pelo estímulo do próximo vídeo “Skibidi”.  Ou pelo riso fugaz de um meme viral. O crepúsculo que dourava o Arno, agora, passava-lhe despercebido. Logo, ninguém apostaria que continuaria sendo um chamado artístico irresistível. Enquanto isso, ele se isolava, enfeitiçado pelo cintilar de uma tela.

As manhãs de antes eram devotadas ao vagar fotográfico pelas ruelas de pedra. Agora convertiam-se em longas jornadas de navegação pelos mares de conteúdo das redes sociais. A obsessão pelo “brainrot” crescia. Ao ponto de suplantar lentamente sua veneração pela fotografia. Relegando, assim, a Florença palpável a um segundo plano. Uma dimensão obscurecida por um mundo virtual que Lucca mal começava a desvendar. O Mercado de San Lorenzo, outrora musa inspiradora, apresentava-se a Lucca sob um novo prisma. As cenas do cotidiano que antes lhe capturavam o olhar – as expressões sinceras dos vendedores, a dança despojada dos compradores – agora lhe inspiravam sob uma nova ótica.

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