Os olhos do monstro

Prólogo


Halos multicoloridos transpassam a débil luz branca. Não estranharia se minhas pálpebras tocassem o chão em breve. Já tive dias melhores. Por sorte, não vejo meu rosto. O próprio espelho de Mamma Roma refletiria tetas menos flácidas. Até mesmo quando perdia seu sutiã na correria. Estrelas flutuam sobre a minha cachola. Fora de controle, numa sequência de rodopios. Fariam inveja à dançarina mais alcoolizada do cabaré. Daquelas entregues aos prantos no camarim após o escorregão na poça de vômito. Errou grosseiramente, se supôs que cheguei ao céu, brother. Pois é, tou mais pra aquela versão bizarra do Pica Pau. Após levar um chacoalhão do Zeca Urubu, saca? Cheio de passarinhos coloridos em torno do crânio. A qualquer momento, o meu cérebro vaza de vez. O negócio tá embolado pra um cacete. 

Pisco repetidamente. A mão já colada na napa, quando distingo seus contornos. Minha linha da vida diz que sou um desses absurdos ridículos. Do tipo que um palhaço depravado contaria pra fazer troça do aleijado depois de roubar sua bengala. Perdão pelas queixas cretinas. Os Beatles gastariam até o último penny pra ver esse arco-íris. De boa… não há dor. É a primeira vez nesse lugar trevoso. Duas gotas de sangue escuro caem em meus olhos. Se não bastasse a visão toda turva… Agora eu sei como o Walcyr Carrasco fica sem óculos… Por via das dúvidas, procuro meu pulso. Os dedos encontram apenas o silêncio. Qual é… Aos poucos, me dou conta do piso encardido, parecendo um estábulo. Essas paredes denunciam a negligência de quem administra essa pocilga.

Vasculhando os meus bolsos, só encontro um distintivo. Porra, não brinca comigo! Cursei faculdade de Direito, ou nem isso? Me fodi legal. Maluco, o que diabos rolou nessa joça? Em pé, embora desvairado, alinho os cabelos. Massageio o couro cabeludo. Hey, Joe, toquei num buraco do tamanho de uma bala? É aí que me dou conta da poça de massa cinzenta. Cadê esse Zé Ruela que andou se divertindo às minhas custas? Não importa, meto um pé na bunda da tontura. Não vejo a hora de pegar o cuzão. A brincadeira dele não vai durar nem um round. Vai ser Tyson contra Marvis Frazier. Quero ver se o larápio consegue sorrir com a fuça realinhada. Enquanto minha cabeça lateja, procuro por uma saída, cambaleando feito bêbado. Ainda vendo duplo, eu me levanto e reparo que as paredes têm uma camada de forro.

Do nada, cenas de louco começam a pipocar à minha volta. Nada abala este velho gavião. Podem apostar. Nem esse filmeco pra assustar velha com Alzheimer. Tem que ser um lance bem mais sinistro pra me derrubar. Aparecem imagens retrô de uma sala. No centro, uma gata e uma pirralha tão sorrindo de mãos dadas. Quer ver o filho da puta projetar o clipe do Balão Mágico? Só falta a voz do Roberto Carlos cantando que somos companheiros. Até aquele palhaço com defeito do Coringa teria dó de um plot tão sem graça. Sem falar essa sala em sépia… tá achando que tá na Irlanda dos anos 20? Eu vou rir por último, desgraçado.

Uma guitarra dissonante estoura contra as paredes. Frases bíblicas holográficas começam a voar sobre a minha cabeça: “Morrendo o homem, porventura tornará a viver? (Jó 14:14)”, “E não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei, antes, aquele que pode fazer perecer no inferno a alma e o corpo. (Mateus 10:28)”. Risadas malignas ecoam pela sala. Milhares de ratos brotam das quinas e passam como fantasmas pelos meus tênis. Onde que fica a saída dessa porra? Descobri de onde R. L. Stine tira sua inspiração. Goosebumps é fichinha perto desse chiqueiro. Aquelas duas gargalham. Sem aviso, um maluco invade e as metralha. As bonecas viram queijo suíço da Polenghi. Aposto que eles usaram catchup do KFC em vez de sangue falso. É quando um alerta vermelho salta sobre os corpos caídos: “Você nos largou na mão, Zanini”. Que porra de filme bobalhão é esse?

Vão reprisar a cena, que merda. Já deu no saco ver o sorrisão da “família maravilha”. Não, espera... Agora que penso nisso, há algo familiar nesse cenário. Uma sensação de déjà vu, como se eu já tivesse estado aqui antes. E aquela figura... Sim, agora me lembro vagamente, era alguém da minha igreja, não era? O Pastor Ribamar! Aquele velho safado sempre me pareceu meio suspeito durante a pregação. Sim, aquele sem vergonha deve estar por trás dessa palhaçada toda. Típico daquele hipócrita construir esse cenário surreal pra me enganar. Nunca caí naquela lorota de que era só rodar o disco da Xuxa ao contrário. Vai catar seu Oscar em outra área, essa pamonha não serve nem pra “Sessão da tarde”. Única gravação. É pior que disco riscado do Engenheiros do Hawaii, ficam passando a mesma cena em loop.

 Papo reto, aquelas bijuterias baratas que a garota usa... cara, não me diga isso. Não pode ser aquele pingente que eu dei a ela quando... ah, não vou cair nessa! Deve ser uma coincidência, milhares de pingentes iguais por aí. Mas e se... e se for aquela? E se essa fosse mesmo minha... não, nem pensar! Meu peito tá apertado pra caralho. Já vi esses rostos. Na certa, são minha boneca e minha filhota sendo fuziladas! Deus, por que você me abandonou, porra? Tou certo de que um desgraçado me jogou nesta cabine pra me torturar, apagando minha memória. Com as têmporas pulsando, apalpo as paredes, procurando por uma saída. Atrás de mim, escuto um zunido. Grudo o olhar no centro da cabine, onde avisto um PC desatualizado em uma mesa. Trançando as pernas, me aproximo dele, às lágrimas. 

A interface é basicona. Ao mexer no mouse, uma chamada de vídeo do MSN pula na tela. Respiro fundo e atendo a ligação. Uma figura de cara andrógina e asas brancas surge no display. Sua expressão é calma, mas seus olhos são velhos. Tão opacos quanto os de Kurt Cobain depois de uma superdose.

— Quem é você, caralho? Onde estou? — pergunto soluçando, apressado.

— Não se lembra de mim, William Zanini? Sou seu anjo da guarda.

— Anjo? Que papo é esse?

— Infelizmente, você faleceu. Você morreu de verdade. Virou mocotó.

As pernas viram gelatina. Morto? Não pode ser!

— Filho da puta mentiroso! Essa aureola é fajuta!

— Você é in-su-por-tá-vel, William. Incomoda muitas pessoas.

— Nem Peter Jackson foi tão trash em sua estreia. Cadê o arame?

Meu anjo da guarda continua falando, inabalável:

— William, durante este ano, verás projeções como essas retratando sua vida. Eu mesmo fiz o compilado, infelizmente.

— Que tipo de projeções?

— O único legado que deixastes em vida foi um diário macabro. Algo repugnante, cheio de sofrimento. A minha compilação capta estes momentos do modo como você descreve.

—  É mesmo é? E por quê?

— O Pai disse que tua alma tava danada, William. Só Ele conhece teu íntimo, mas eu enxerguei potencial de redenção na sua narrativa. Por isso intercedi.

— Quer dizer que eu não tou fodido? Vou poder encostar a cabeça no travesseiro em paz?

Coço o queixo e continuo escutando.

— Não é que nem assistir a “Um sonho de liberdade”? Que se lixe. Sua tarefa será escrever um novo diário, refletindo sobre acertos e erros. Uma vez que encontrares seu maior inimigo, cê e tua família estarão prontos para seguirem em paz. 

— E seu eu falhar?

— Se falhares, quando aquela porta se abrir…

Minha respiração trava por instantes.

— Sim…

— O limbo o abandonará para sempre no inferno. Sinto muito.

— Se você quisesse, poderia convencer o Criador a mudar de ideia. Que porra de protetor é você?

— Nananinanão. Isso foi o melhor que pude conseguir. 

— Por favor…

— Já passa de quatro meses de negociação, William. O tempo tá correndo.

Engulo em seco. Quer saber? Até que enfim o filme vagabundo vai mostrar algo além daquela cena sádica. Ah, lá vem o psicopata atirador de novo, não perde tempo em massacrar todo mundo. Espera aí, dá pra ver quem é esse doente? Só aparece pela metade, de costas igual um trouxa. Tudo o que enxergo são aqueles ombros de mandioca grudados no corpo, deve ter nascido já careca, sem pescoço. E anda mancando mais que o John Wayne bêbado. De onde conheço esse retardado? Não, nem daqui a mil anos daria meu cacete pra um verme desses, com certeza nunca topei uma anta dessa.

Enquanto procuro desesperadamente uma saída dessa estranha situação, meus olhos notam algo inusitado no canto da sala. Um pequeno ratinho cinza, parecendo observar-me com curiosidade, começa a se aproximar devagar. Franzo o cenho, confuso. 

— Mas o que diabos...? — murmuro, antes de ver o ratinho parar ao meu lado e se elevar em suas patas traseiras, me encarando com olhinhos brilhantes.

Então, para minha total surpresa, o ratinho abre a boca e diz em um tom de voz comicamente grave:

— Ei, chefe. Você parece meio perdido aí. Precisa de uma ajudinha?

Arregalo os olhos em choque total.

— É possível? Você tá realmente conve­rsando?!

O ratinho simplesmente dá de ombros de forma indifere­nte.

— Claro que tou conve­rsando, amigo. Neste lugar peculiar, qualque­r coisa imaginável pode se manife­star.

Então o ser celestial se­ inclina para mais perto, com um comportamento conspiratório.

— Neste­s reinos, as leis da física têm pouca influência, meu amigo. As criaturas aladas não ape­nas voam...

— ... elas também rebolam ao som de Kachina Dance com os espíritos da floresta — brinca o rato — Então, por que­ hesitar? Permita-me ofe­recer orientação.

Foda-se. Não caio nessa lorota alucinatória… Mas, pensando bem, é a primeira vez que vejo essa aura divina. Igualzinha a que o pastor descreveu no culto. Ouço um “Adeus…”. Quando olho de novo, a imagem do ser celestial se dissipa. Estou confuso, mas preciso fazer isso por elas… e por mim. É hora de botar a mão na massa e editar essa porra.


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