Amor infernal (Henri Vaz)


No coração do Bosque do Silêncio, Apolônio definhava em um leito de musgo, vítima de um pacto sombrio feito anos atrás. Aproximei-me com uma bandeja de casca de árvore, carregando um bule fumegante. O vapor denso subia, misturando-se com a névoa do bosque.

Servi o chá numa xícara de madeira entalhada. "Como está, cara?" perguntei, forçando um sorriso. “Melhorando, você não acha?” respondeu Apolônio, com voz fraca. Quando ele levou a xícara aos lábios, dei um tapa, estilhaçando-a contra as raízes. O ritual seria minha última tentativa.

“Por que fez isso?” ele indagou. “Foi instintivo. Impedi que se queimasse”, respondi, tremendo, consciente de minha impotência. Exausta, adormeci próxima a ele, apenas para despertar horas depois, atormentada: “Não... Não! Eu não quero!”

Aquele crápula do Capeta não parava de me assombrar nos sonhos da noite em curso. Acordei tremendo e fedendo a suor, os lençois enrolados no corpo. Podia sentir a respiração quente e fedida dele na nuca. Então puxei a cortina e olhei para fora – o céu ainda negro feito breu.

Abri a porta e fui até o bosque, silenciosa como uma sombra. O ar frio da madrugada arrepiou minha pele, enquanto o cheiro úmido de terra e folhas apodrecidas invadia minhas narinas. Meus pés descalços afundavam na grama orvalhada, cada passo cuidadoso para evitar galhos secos que pudessem estalar. O coração batia acelerado no peito, um misto de medo e determinação me impulsionando adiante.

As árvores pareciam sentinelas silenciosas, seus galhos retorcidos formando sombras sinistras à luz fraca da lua minguante. Ouvi o pio distante de uma coruja, sobressaltando-me por um instante. O bosque, que durante o dia era um refúgio de paz, agora se tornava um labirinto de escuridão e segredos.

Conforme me aproximava do local onde deixara Apolônio, meu coração se apertava de apreensão. Na penumbra, vi que o peito dele mal se mexia sob os cobertores. Toquei a testa dele – quente feito brasas, a pele pegajosa de suor. Seus olhos, semicerrados, pareciam vidrados e distantes. Dei água e um pano úmido, rezando em silêncio para que aguentasse mais um dia, meus lábios se movendo em uma prece desesperada que nem eu mesma entendia.

Com um suspiro pesado, percebi que não poderia deixá-lo ali. Reuni todas as minhas forças, tanto físicas quanto emocionais, e me preparei para a tarefa hercúlea de carregá-lo para casa. Enrolei-o nos cobertores o melhor que pude, tentando protegê-lo do frio cortante da madrugada.

Ao erguer seu corpo, senti o peso de uma vida se esvaindo em meus braços. Cada passo era uma batalha contra a gravidade e o cansaço. Meus músculos ardiam, protestando contra o esforço sobre-humano. O suor escorria por meu rosto, misturando-se às lágrimas silenciosas que não conseguia conter.

O caminho de volta parecia interminável. As sombras do bosque dançavam ao nosso redor, como se zombassem de nossa situação desesperadora. A respiração de Apolônio, fraca e irregular, era o único som além do farfalhar das folhas e do meu próprio ofegar.

Finalmente, após o que pareceu uma eternidade, avistei as luzes fracas da casa. Meus braços tremiam, ameaçando ceder a qualquer momento. Com um último esforço, atravessei a soleira da porta, carregando meu fardo precioso.

Deitei Apolônio cuidadosamente na cama, ajeitando os travesseiros para tentar deixá-lo o mais confortável possível. Olhei para seu rosto pálido e abatido, uma sombra do homem que ele costumava ser. Naquele momento, uma certeza dolorosa se instalou em meu peito: estava carregando-o para casa já sem esperança, como quem prepara um leito de morte.

Sentei-me ao lado da cama, segurando sua mão quente e frágil entre as minhas. As horas que se seguiriam seriam uma vigília silenciosa, uma luta contra o inevitável. E enquanto a escuridão lá fora começava lentamente a ceder lugar aos primeiros raios de sol, eu me perguntava se Apolônio veria mais um amanhecer.

Foi quando senti aquele toque gélido nas costas, antes de ouvir a risada sombria atrás de mim. “Chegou a hora, minha querida. É quando você cumpre sua parte no acordo.”

Virei para encarar o Capeta, sentindo o medo gelado na alma. Apesar dos séculos no Inferno, a beleza ainda roubava o fôlego e a razão. “Não posso fazer isso”, sussurrei, fraca. “Amo demais o Apolônio.”

Os olhos vermelhos do demônio flamejaram. “Você sabia das regras quando casamos. Suas vontades não significam nada para mim.” Aquilo acabou comigo.

“Você pode me usar, mas nunca terá o meu amor!”, retruquei. Ao vê-lo rir, procurei uma escapatória.

Corri cega até encontrar um padre. Contei-lhe tudo sobre minha vida amaldiçoada. Ele ofereceu ajuda, disposto a trocar sua alma por duas.

Na minha casa, Apolônio mal tinha pulso. À meia-noite, o demônio surgiu, furioso ao ver o círculo de sal. Propus um acordo para salvar Apolônio.

O padre interveio brevemente, explicando: “Ela oferece o coração de Apolônio. Você viverá ao lado dele, amando-o como mulher, mas o amor dela permanecerá intacto.”

O demônio ponderou, um sorriso torto nos lábios. “É uma proposta ousada. Como garantirei que cumprirá sua parte?”

Olhei para Apolônio, tão frágil. Meu amor por ele era maior que o medo. “És minha perdição, eu já não tenho uma alma a perder”, lhe disse. “Trato feito! Nada mais que a carne é o meu fim.”, ele retrucou. “Dê-me sua palavra diabólica.”

Após longos minutos de tensão, ele concedeu. Com um estalar de dedos, Apolônio despertou curado, para o nosso alívio. A partir daquele dia, meu destino estava selado – dividida entre dois amores impossíveis. “Você está curado!”, o padre disse. Olhei em volta, mas o demônio havia sumido.

O demônio, disfarçado de mulher, seduziu Apolônio, formando um triângulo infernal conosco. Nossa relação pecaminosa tornou-se explícita, com encontros carnais em lugares improváveis.

No porão de uma igreja abandonada no coração do Bosque do Silêncio, onde árvores retorcidas sussurravam segredos sombrios, nos reunimos pela última vez – eu, Apolônio e o Capeta. Apolônio jazia em êxtase numa cama improvisada, enquanto a névoa etérea do bosque se infiltrava pelas frestas. O demônio anunciou: “Chegou a hora de cumprirem o acordo.”

Apolônio jazia numa cama improvisada, seu corpo contorcido em espasmos de êxtase e agonia. Seus olhos, outrora cheios de vida e amor, agora estavam vidrados e distantes, refletindo o horror indizível que sua alma experimentava. A névoa etérea do bosque se infiltrava pelas frestas das paredes e do teto, serpenteando pelo chão de terra batida como dedos espectrais, ansiosos para nos tocar.

O Capeta, uma figura imponente e terrível, pairava sobre nós. Sua presença era sufocante, emanando um calor infernal que fazia o suor escorrer por minha pele gelada. Com um sorriso cruel que revelava dentes afiados como navalhas, ele anunciou: “Agora não tem mais volta.” Sua voz era como o raspar de unhas em ardósia, fazendo meus ossos vibrarem de pavor.

Forçada a participar deste ritual macabro, assisti horrorizada ao tormento de Apolônio. Cada grito seu era uma adaga em meu coração, cada contorção de seu corpo uma tortura para minha alma. Lágrimas quentes escorriam por minhas faces, misturando-se ao suor frio do medo.

Com a alma de Apolônio arrancada de seu corpo em um lampejo de luz profana, senti minha própria essência se despedaçar. Num ato final de desespero e amor, ergui a adaga amaldiçoada. A lâmina cintilou à luz das velas, refletindo promessas de dor e libertação.

“Perdoe-me”, sussurrei, minha voz embargada pela emoção e pelo terror. Com um movimento rápido e decidido, cravei a adaga em nossos peitos unidos num abraço final. A dor foi intensa, mas curiosamente distante, como se já estivesse além dos limites da consciência mortal.

O riso demoníaco do Capeta ecoou no porão, reverberando nas paredes de pedra e penetrando até o âmago de meu ser. Era um som de triunfo, de vitória sobre nossas almas condenadas. A escuridão começou a nos envolver, mais densa e impenetrável que a noite mais profunda.

Através da névoa da morte iminente, pude sentir o Bosque do Silêncio ao nosso redor. Seus galhos espectrais pareciam se estender até nós, testemunhas silenciosas de nosso fim trágico. O sussurro das folhas era como um lamento, uma elegia para os amantes perdidos.

Num último esforço, busquei os lábios de Apolônio. Nosso beijo final foi amargo e doce, repleto de arrependimento e amor eterno. Nele, selamos nosso destino: unidos na morte, mas não salvos do Inferno que nos consumia.

Enquanto a vida se esvaía de mim, ouvi passos apressados descendo as escadas do porão. Através de olhos semicerrados, vi uma figura em vestes eclesiásticas emergir das sombras. O padre, com o rosto pálido de horror, correu em nossa direção.

Com mãos trêmulas, ele nos tocou, verificando sinais de vida. Seu rosário tilintava suavemente, um contraponto gentil ao silêncio sepulcral que havia se instalado. Senti suas mãos fortes me erguendo, juntamente com o corpo inerte de Apolônio.

Minha consciência oscilava, mergulhando na escuridão e retornando em lampejos breves. Em um desses momentos de lucidez, percebi que o padre nos carregava para fora do porão, subindo as escadas com dificuldade sob nosso peso.

O ar fresco da noite tocou meu rosto, um último presente do mundo dos vivos. As estrelas piscavam no céu noturno, indiferentes à tragédia que se desenrolava sob elas. O sussurro das árvores do Bosque do Silêncio parecia mais gentil agora, como se nos oferecesse consolo em nossos momentos finais.

Minha visão escurecia, mas pude sentir o padre nos deitando suavemente na grama úmida. Sua voz, grave e reconfortante, murmurava uma oração. Em meus últimos instantes de consciência, senti sua mão em minha testa, fazendo o sinal da cruz.

“Eu te absolvo”, ouvi ele dizer, sua voz embargada pela emoção. “Que Deus tenha misericórdia de suas almas.”

A bênção do padre foi a última coisa que registrei antes que minha consciência se apagasse completamente. Era um fio tênue de esperança em meio à escuridão que nos envolvia, uma promessa de redenção que talvez, apenas talvez, pudesse nos salvar do destino que havíamos selado.

Com um suspiro final, deixei-me levar pela correnteza da morte, carregando comigo a lembrança do toque gentil do padre e a esperança de que, apesar de tudo, nossas almas pudessem encontrar paz.



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